quarta-feira, 2 de maio de 2007

Reflexão económica, jurídica, e moral, sobre o risco de despenhamento de aeronave em Lisboa

Uma análise custo-benefício para o aprofundamento do argumento da deslocalização do aeroporto por questões de segurança


Atenta a ínfima probabilidade de um avião se despenhar sobre Lisboa, eu nunca estaria de acordo em gastar rios de dinheiro para mudar o aeroporto da Portela de sítio.

Pensando racionalmente, sempre diria que esse dinheiro deveria ser gasto a evitar mortes mais prováveis e em maior número. Fique o exemplo dos acidentes na estrada. Fique o exemplo da ideia de se gastar dinheiro em colocar um extintor – ou dois ou três – em cada casa portuguesa. Ou detectores de incêndio em rigorosamente todas as divisões de habitações, de comércios, de sítios de diversão, etc. Ou em comprar coletes à prova de bala para todas as pessoas, para evitar mortes de balas de tiroteios alheios. Ou de dar um subsídio a todos os portugueses para todos podermos ter um carro classificado com 5 estrelas nos testes de colisão do EuroNCAP.
Este discurso é tudo menos irónico. Afinal de contas, morrem várias pessoas por ano em virtude dos riscos que descrevi. De acidente de avião em Lisboa é que ainda não morreu uma única nos últimos 60 anos. E todos os estudos dizem que isso é pouco – muitíssimo pouco – provável.

(A este propósito é preciso dizer a verdade: o despenhamento de um avião não causa centenas de mortos no solo, como a prodigiosa imaginação popular tantas vezes fantasia. Não conheço mais do que dois acidentes de avião que tenham feito mais de 50 mortos no solo na história da aviação. Ora, tendo em conta que actualmente a cada segundo que passa descola um avião comercial no mundo inteiro, o registo de acidentes parece-me muitíssimo bom.

Acidentes com mais de 50 mortos no solo:

1)
Kinshasa, Janeiro 1996 – 300 mortos no solo, que estariam num mercado muito frequentado. O acidente aconteceu em África com um Antonov A-12, operado por uma tripulação russa. (Sem preconceitos, isto quer dizer frequentemente um avião sobrecarregado a operar em países normalmente com fraca fiscalização. O relatório documenta isso mesmo.) Veja aqui:
http://www.airliners.net/articles/read.main?id=90

e

2)
2002, May 4, Kano, Nigeria: EAS Airline BAC 1-11 bound for Lagos plowed into a poor, densely populated suburb of Kano shortly after takeoff, killing 148. Dead included all 76 aboard and dozens on the ground.
http://www.infoplease.com/ipa/A0001449.html

Os acidentes que conheço que a seguir causaram mais mortos no solo – 47, em ambos – são os descritos aqui,

(B747 da El Al, em Schiphol)
http://www.jetsite.com.br/2006/mostra_blackbox.asp?codi=26

e

Sept. 5, Medan, Indonesia: Mandala Airlines, Boeing 737, crashed soon after takeoff, killing 102 on board and 47 on the ground; 13 passengers survived.
http://www.infoplease.com/ipa/A0001449.html

(Se tiverem aditamentos/correcções a fazer, mandem-mos!)

Não conto obviamente com ataques terroristas: teríamos de acabar com a existência de cidades e de aviões para os prevenir por completo. É um problema que nada tem que ver com aeroportos dentro de cidades, naturalmente.
O de Tenerife, 1977 – o maior acidente da história da aviação até hoje, com mais de 500 mortos – também não conta: dois B747 colidiram na pista: isso acontece em qualquer lado, não só nos aeroportos dentro das cidades, como é óbvio.

Procure no google por “fatalities on the ground”, “aircraft disaster”.)


Conformar-me-ei, a custo, se a Portela um dia tiver que desaparecer. Mas não estou convencido da necessidade desse desaparecimento por razões de segurança.

Se se disesse: "tiramos o aeroporto dali para evitar toda a qualquer probabilidade de acidente", eu sempre diria que o dinheiro era mais bem gasto na prevenção de outros danos bem mais prováveis. É que para mim um acidente de aviação que cause “x” mortos não é nem mais nem menos lamentável do que outro ou outros acidentes que causem o mesmo número de mortos.

Mas, por qualquer razão que ignoro profundamente, as pessoas temem mais os riscos associados à aviação do que os associados a outras actividades. É até muito frequente dizerem-me que um piloto tem mais responsabilidades no transporte de 300 pessoas do que um condutor automóvel tem no transporte de uma. Eu discordo respeitosamente. Acho que há aqui um fenómeno inconsciente que leva a um passo em falso no raciocínio: o piloto é na verdade uma pessoa mais responsável, porque isso lhe é, por razões históricas, exigido. (Entre essa razões históricas está o facto de a aviação ter tido – e continuar a ter – a necessidade de provar continuamente que voar é seguro. E sempre que cai um avião lá volta o medo. Os automóveis, esses, é que se podem espetar uns atrás dos outros, em catadupa. Não há medo – nem respeito – que surja.) Daí gerou-se a ideia de que havia mais responsabilidade. Mas a responsabilidade de um condutor automóvel deve ser a mesma que se exige a um piloto de aeronave. A responsabilidade, note-se. Não é a dificuldade. Por isso, com o mesmo grau de exigência de responsabilidade – que é questão moral e jurídica – haverá sempre mais condutores do que pilotos, dada a maior dificuldade da actividade (o voo por instrumentos, desde logo!) – questão técnica.
Não esqueço, quando, aos 15 anos, fui de Lisboa a Macau. Fizemos transbordo em Heathrow. Vínhamos num horrível B737-200 e passámos para um enorme e lustroso 747. Diz um colega meu quando entrámos no 747: "já viste a responsabilidade que um piloto destes tem?" Respondi: é a mesma do de há bocado. Resposta: "nem sequer compares!".
Pois não, o avião era muuuuuito maior. E quando morrem 300 pessoas num acidente toda a gente tem medo e acha horrível. Só não acham horrível não ter extintor em casa ou não pôr o cinto de segurança quando andam no banco de trás de um automóvel.

Mas, seja qual for a posição que se tome sobre esta questão particular do risco de acidente, a questão actual mais pertinente até é esta:

«Tirar o aeroporto da Portela para o pôr na Ota.»

Como disse?!?

Então não há lá populações em malha urbana? (Aquilo não é Lisboa, mas também não é um descampado, certo?...) Não há lá uma auto-estrada com enorme movimento? Não há prédios de 12 andares? Não há uma central termoeléctrica? Não há linhas de alta-tensão? Não vai lá crescer uma cidade em volta quando se fizer o aeroporto? Onde está a cintura de segurança?

Vamos mudar o aeroporto de sítio de 30 em 30 anos? Sempre que à volta dele cresce uma cidade? (O que, de resto, acontece em todo o mundo! Já ouvi dizer: “Heathrow é fora de Londres!” Pois, mas não é fora da malha citadina, pois não? Os de Paris a mesma coisa, certo?)


Ou aqui os argumentos de há pouco já não colhem? E porquê?

O avião só não pode cair em Lisboa? Que caia onde Judas perdeu as botas, é lá com ele...

A sério, expliquem-me por que pode o avião cair no Carregado mas não em Lisboa.
Expliquem-me, porque eu não estou a ver bem, concerteza.

Se o avião cair em cima de alguém meu amigo ou familiar, continuarei sempre a dizer que não é completamente líquido o argumento da segurança para tirar o aeroporto daqui, atenta a relação custo-probabilidade de risco. Menos ainda para o pôr noutra área urbana. Não mudo por dá cá aquela palha, como não mudo por morrerem 300 pessoas. A realidade da segurança da aviação é o que é. Acidentes haverá sempre. Tomara que tudo na vida fosse tão acidentado como a aviação. Se eu pudesse – gerindo a realidade política e os investimentos em torno da segurança – tornar a circulação rodoviária apenas 2 duas vezes mais segura em troca de uma aviação 10 vezes mais insegura com um estalar de dedos, não pensava duas vezes. É que saldo de corpos dilacerados seria muito menor do que actualmente.

(Não se aplica a este meu desejo acabado de expressar, o princípio – que aceito sem pestanejar, de resto – de que nunca podemos prejudicar uma vida para salvar outra vida, excepto na legítima defesa.
Esse argumento – o da igual dignidade das vidas – só é aplicável numa situação de risco iminente. Nos livros de Direito Penal os seguintes exemplos são recorrentes. Se um comboio descontrolado ameaça matar 10 operários que estão a trabalhar na linha, ninguém poderá desviar o comboio para outra linha onde estarão apenas 5 operários que serão sacrificados. Se o fizer, o Direito até pode desculpar a acção, isto é, não censura o agente e não o condena, mas o Direito dirá sempre que essa acção foi um acto ilícito, contrário ao Direito. Outro exemplo é o bombeiro que, tendo de escolher entre salvar uma pessoa ou salvar dez, não é condenado se, não podendo salvar todas, preferiu salvar a primeira, em prejuízo das dez.
Este princípio não é válido no que eu acabara de dizer, porque o princípio só é aplicável na iminência dos danos (o comboio que está na iminência de matar os operários, o bombeiro que tem de decidir quem salva imediatamente), não na gestão política a prazo dos riscos.
Ou seja, o que estamos a ponderar, no caso Portela/Ota, é uma questão de gestão de riscos, não uma troca real de danos iminentes por outros danos iminentes. Juridicamente não se pode matar uma pessoa para salvar outra – ou outras, por maior que seja o número – em caso algum, excepto na legítima defesa e em casos considerados análogos (estado de necessidade defensivo, por ex.). Mas é possível, mesmo juridicamente, trocar riscos por outros riscos. O Governo faz isso todos os anos no Orçamento, quando escolhe gastar mais dinheiro aqui ou ali: nas pontes ou nos hospitais?; na saúde ou na polícia?; nas estradas ou nos aeroportos?, nos semáforos ou no alcatrão?
Portanto: a política escolhe os riscos que quer minorar, atendendo aí então ao acertado critério “quanto menos vítimas melhor”. (Suponho eu!)
A razão da diferença é simples de enunciar: enquanto a realidade não determinou o sacrificado, é possível ao homem manipulá-la, dirigindo-lhe os riscos (ex. da gestão política dos riscos). Depois já não: seria o Homem a escolher os sacrificados. A matar, portanto (ex. do comboio). (É um tema muito interessante discutido pela Ética e pelo Direito.))

Se alguém quer tirar o aeroporto de Lisboa para o pôr numa área com uma cintura de segurança em volta, eu compreendo.

Mas acho, ainda assim, que a relação "custo-benefício" poderia causar mortos:
É que com esse dinheiro salvar-se-iam mais vidas noutros sítios.

Um breve exemplo:
Estradas portuguesas: 2000 mortos por ano em média, nos últimos 20 anos.
Portela: 0 mortos em 60 anos.

Julgo que o que as pessoas querem não é, na verdade, evitar o acidente.
O que se pretende é evitar toda e qualquer hipótese de acidente. O que as pessoas querem, na verdade, é evitar a ideia de que pode haver um acidente.

Mas obviamente o último desiderato é impossível.

Está bom de ver que tudo isto é um problema psicológico: a insuportabilidade de nos confrontarmos e conformarmo-nos com um avião despenhado em Lisboa, a terra onde vive a intelligentsia a que cada um de nós acha que pertence. (É, é verdade: por que nos custará mais ver as torres gémeas a cair do que saber que há crianças a morrer à fome? É que nós “vemo-nos” nos primeiros, não nas últimas. Nós vivemos em Lisboa, não vivemos na Ota ou no Carregado. O aeroporto aqui perturba-nos? Pomo-lo em terra alheia.)

Eu não tenho rigorosamente problema nenhum em confrontar-me e conformar-me com isso. A razão? Muito simples: a ínfima probabilidade de isso acontecer, por um lado. Por outro, a consciência de que é impossível evitar que isso aconteça, em absoluto.

É como lidarmos com o facto de um dia podermos morrer carbonizados ou afogados (para dar dois exemplos de mortes muito indesejáveis).
Como se lida com isso? Por uma lado, pensando na ínfima probabilidade de isso acontecer. Por outro lado, percebendo que nada podemos fazer para evitar isso por completo: se vier, que seja rápido, ao menos. Podemos, é claro, deixar de viver para nos defendermos contra esse risco: não chegar ao pé do mar, não nadar em piscinas, não frequentar sítios densamente povoados, como teatros, discotecas, certos transportes, onde a fuga esteja dificultada em caso de incêndio, etc, etc, etc..

Tudo isto seria pouco sensato, certo?

Pois, eu acho que é igualmente pouco sensato gastar muito dinheiro para deslocalizar um aeroporto por causa da segurança.
Acho que o dinheiro salvava mais vidas utilizado de outra maneira.
E, vistas as coisas por este prisma, afinal gastar tanto dinheiro para tão pouco até poderia ser moralmente injusto, quando com o mesmo dinheiro se poderia salvar mais vidas.

Aqui não colhe, como já expliquei, o argumento de que todas as vidas são igualmente dignas, e que por isso não seria censurável gastar muito dinheiro para salvar uma vida que fosse, em prejuízo de outras que se perdessem.
É o que o argumento da igualdade das vidas só é utilizado – quer pelo Direito, quer pela Ética – quando estão em conflito riscos iminentes, como também atrás já referi.
Por isso, quando se trata de ordenar a realidade tendo em conta riscos que não estão iminentes (e não está iminente a queda de nenhum avião em Lisboa: caso contrário, uma chamada telefónica para o piquete da PJ era suficiente para impedir um avião de deslocar!), isto é, riscos de concretização imprevisível, parece-me que não podemos, sob pena de imoralidade, utilizar de forma manifestamente desproporcional certos esforços da comunidade – traduzidos em dinheiro, em força de trabalho – para os gastar na eliminação de riscos ínfimos, quando poderiam ser gastos na eliminação de outros riscos mais patentes.

Se o princípio da “igualdade da dignidade das vidas” pudesse servir, a nível moral, para justificar gastar muito dinheiro para eliminar um risco tão ínfimo como a queda de um avião – argumentando-se, portanto: “ninguém me pode censurar por gastar seja quanto dinheiro for para salvar uma vida que seja!” –, então a política seria a desgraça da comunidade (como está a ser, a meu ver!): é que então bastava que quem detivesse o dinheiro detivesse para nosso azar também a força, e...

...aplicá-lo-ia sempre para maximizar a preservação da sua vida e a das vidas do seu clã, em prejuízo da preservação da vida dos outros.

Mas se calhar é isto que querem as pessoas que vivem nas imediações da Portela (não todas, obviamente). Se calhar é isto que quer Lisboa (não toda, por certo). Se calhar é o que secretamente pensa a capital de um país onde «Lisboa é Lisboa, e o resto é paisagem».
O egoísmo é silencioso e insidioso.

Gastaremos recursos preciosos para poupar a 40 ou 50 pessoas o risco ínfimo de lhes cair um avião em cima?

Eu, que desde 1995 vivo sempre sob o último 1,5 Km da ladeira de aproximação à pista 03, digo:

não.

Gastem o dinheiro na prevenção e fiscalização rodoviárias. Estaremos mais seguros. Mais vivos
.


Gabriel Órfão Gonçalves

Pós-escrito:

Alguns dos subscritores da minha mailing list já me disseram que defendem um aeroporto na margem sul com uma cintura de segurança. É uma ideia boa. Se conseguirmos juntar à necessidade de um aeroporto a comodidade de lhe fazer um cintura de segurança razoável, óptimo. Mas no texto anterior foi sobretudo a comparação Portela/Ota que esteve em jogo.
Tenho todo o respeito por quem discorde radicalmente da minha opinião. E se tiverem factos ou argumentos diferentes, comentem, por favor!
;)

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